terça-feira, 22 de maio de 2012

Os Luzíadas de Luís Vaz de Camões

Eu não poderia deixar de plantar neste jardim a sublimação métrica e rítmica em gênero, número e grau da perfeita Ode de Camões! Citarei a parte mais lírica da História portuguesa (talvez por... tão romântica que sou), deixarei aqui a lembrança da desventurada pobrezinha, que depois de morta foi rainha!


Episódio de Inês de Castro


Passada esta tão próspera vitória, 
Tornado Afonso à Lusitana Terra, 
A se lograr da paz com tanta glória 
Quanta soube ganhar na dura guerra, 
O caso triste e dino da memória, 
Que do sepulcro os homens desenterra, 
Aconteceu da mísera e mesquinha 
Que despois de ser morta foi Rainha.


Tu, só tu, puro amor, com força crua, 
Que os corações humanos tanto obriga, 
Deste causa à molesta morte sua, 
Como se fora pérfida inimiga. 
Se dizem, fero Amor, que a sede tua 
Nem com lágrimas tristes se mitiga, 
É porque queres, áspero e tirano, 
Tuas aras banhar em sangue humano.


Estavas, linda Inês, posta em sossego, 
De teus anos colhendo doce fruito, 
Naquele engano da alma, ledo e cego, 
Que a fortuna não deixa durar muito, 
Nos saudosos campos do Mondego, 
De teus fermosos olhos nunca enxuito, 
Aos montes insinando e às ervinhas 
O nome que no peito escrito tinhas.


Do teu Príncipe ali te respondiam 
As lembranças que na alma lhe moravam, 
Que sempre ante seus olhos te traziam, 
Quando dos teus fernosos se apartavam; 
De noite, em doces sonhos que mentiam, 
De dia, em pensamentos que voavam; 
E quanto, enfim, cuidava e quanto via 
Eram tudo memórias de alegria. 


De outras belas senhoras e Princesas 
Os desejados tálamos enjeita, 
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas, 
Quando um gesto suave te sujeita. 
Vendo estas namoradas estranhezas, 
O velho pai sesudo, que respeita 
O murmurar do povo e a fantasia 
Do filho, que casar-se não queria, 


Tirar Inês ao mundo determina, 
Por lhe tirar o filho que tem preso, 
Crendo co sangue só da morte ladina 
Matar do firme amor o fogo aceso. 
Que furor consentiu que a espada fina, 
Que pôde sustentar o grande peso 
Do furor Mauro, fosse alevantada 
Contra hûa fraca dama delicada?


Traziam-na os horríficos algozes 
Ante o Rei, já movido a piedade; 
Mas o povo, com falsas e ferozes 
Razões, à morte crua o persuade. 
Ela, com tristes e piedosas vozes, 
Saídas só da mágoa e saudade 
Do seu Príncipe e filhos, que deixava, 
Que mais que a própria morte a magoava, 


Pera o céu cristalino alevantando, 
Com lágrimas, os olhos piedosos 
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando 
Um dos duros ministros rigorosos); 
E despois, nos mininos atentando, 
Que tão queridos tinha e tão mimosos, 
Cuja orfindade como mãe temia, 
Pera o avô cruel assi dizia: 


(Se já nas brutas feras, cuja mente 
Natura fez cruel de nascimento, 
E nas aves agrestes, que somente 
Nas rapinas aéreas tem o intento, 
Com pequenas crianças viu a gente 
Terem tão piedoso sentimento 
Como co a mãe de Nino já mostraram, 
E cos irmãos que Roma edificaram:


ó tu, que tens de humano o gesto e o peito 
(Se de humano é matar hûa donzela, 
Fraca e sem força, só por ter sujeito 
O coração a quem soube vencê-la), 
A estas criancinhas tem respeito, 
Pois o não tens à morte escura dela; 
Mova-te a piedade sua e minha, 
Pois te não move a culpa que não tinha.


E se, vencendo a Maura resistência, 
A morte sabes dar com fogo e ferro, 
Sabe também dar vida, com clemência, 
A quem peja perdê-la não fez erro. 
Mas, se to assi merece esta inocência, 
Põe-me em perpétuo e mísero desterro, 
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, 
Onde em lágrimas viva eternamente. 


Põe-me onde se use toda a feridade, 
Entre leões e tigres, e verei 
Se neles achar posso a piedade 
Que entre peitos humanos não achei. 
Ali, co amor intrínseco e vontade 
Naquele por quem mouro, criarei 
Estas relíquias suas que aqui viste, 
Que refrigério sejam da mãe triste.)


Queria perdoar-lhe o Rei benino, 
Movido das palavras que o magoam; 
Mas o pertinaz povo e seu destino 
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. 
Arrancam das espadas de aço fino 
Os que por bom tal feito ali apregoam. 
Contra hûa dama, ó peitos carniceiros, 
Feros vos amostrais e cavaleiros? 


Qual contra a linda moça Polycena, 
Consolação extrema da mãe velha, 
Porque a sombra de Aquiles a condena, 
Co ferro o duro Pirro se aparelha; 
Mas ela, os olhos, com que o ar serena 
(Bem como paciente e mansa ovelha), 
Na mísera mãe postos, que endoudece, 
Ao duro sacrifício se oferece:


Tais contra Inês os brutos matadores, 
No colo de alabastro, que sustinha 
As obras com que Amor matou de amores 
Aquele que despois a fez Rainha, 
As espadas banhando e as brancas flores, 
Que ela dos olhos seus regadas tinha, 
Se encarniçavam, fervidos e irosos, 
No futuro castigo não cuidosos.


Bem puderas, ó Sol, da vista destes, 
Teus raios apartar aquele dia, 
Como da seva mesa de Tiestes, 
Quando os filhos por mão de Atreu comia ! 
Vós, ó côncavos vales, que pudestes 
A voz extrema ouvir da boca fria, 
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, 
Por muito grande espaço repetistes.


Assi como a bonina, que cortada 
Antes do tempo foi, cândida e bela, 
Sendo das mãos lacivas maltratada 
Da minina que a trouxe na capela, 
O cheiro traz perdido e a cor murchada: 
Tal está, morta, a pálida donzela, 
Secas do rosto as rosas e perdida 
A branca e viva cor, co a doce vida. 


As filhas do Mondego a morte escura 
Longo tempo chorando memoraram, 
E, por memória eterna, em fonte pura 
As lágrimas choradas transformaram. 
O nome lhe puseram, que inda dura, 
Dos amores de Inês, que ali passaram. 
Vede que fresca fonte rega as flores, 
Que lágrimas são a água e o nome Amores.

(Os Lusíadas, Canto III, 118 a 135) 

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